A Epopeia Bandeirante: Benedicto Calixto e a construção da identidade paulista

Museu do Café
20 min readFeb 24, 2021

Por Pietro Amorim, historiador e pesquisador do Museu do Café

Resumo

A inauguração da Bolsa Oficial de Café, em sete de setembro de 1922, integrou as Comemorações do Primeiro Centenário da Independência do Brasil. Sobre o salão do pregão, área principal do edifício, foi instalado o vitral intitulado “A Epopeia dos Bandeirantes”, projetado por Benedicto Calixto e executado pela Casa Conrado. Mais do que um elemento decorativo, ele é uma representação alegórica da história nacional com um protagonismo de São Paulo. O presente artigo apresentará como a figura do bandeirante se tornou um símbolo da identidade paulista, e a contribuição de Benedicto Calixto para essa construção por meio do vitral da Bolsa de Café.

Introdução

A Bolsa Oficial de Café, criada por lei em 1914 para centralizar e regular as operações de compra e venda de café a termo, iniciou suas atividades no ano de 1917, instalada em um salão alugado no edifício Pedro Santos, na Rua XV de Novembro com a Rua do Comércio, área central do comércio do grão na cidade de Santos.

Em 1920, a Câmara Sindical dos Corretores de Café, responsável pelo funcionamento da instituição, já requeria ao Governo do Estado de São Paulo a urgência da construção de uma nova sede frente ao crescimento das negociações e do número de corretores. No mês seguinte foi iniciado o processo para desapropriação dos imóveis no terreno que abrigaria o novo edifício, seguindo-se o início das obras.

A inauguração do palacete foi planejada — e não por acaso — para integrar a programação das Comemorações do Primeiro Centenário da Independência, em 1922. Esse evento, mais do que uma mera solenidade, foi elencado como um momento de inflexão por diferentes grupos intelectuais e políticos para definir e se inserir na formação de uma identidade nacional.

Nesse contexto, a nova sede transcendia a função de abrigar a Bolsa, possuindo também um aspecto de monumento ao café e ao poderio econômico de São Paulo. Foram utilizadas modernas técnicas construtivas, materiais importados e nacionais de primeira qualidade, e uma grande variedade de artífices para alcançar esse resultado.

Na parte interna do prédio, o lugar que obteve mais destaque foi o salão do pregão. Além de ser o coração da Bolsa, onde a instituição desempenhava sua principal função, ele foi pensado para ser visto e admirado: podia ser visualizado tanto por quem entrava pelo acesso principal da Rua XV de Novembro, quanto pela lateral na Rua Frei Gaspar, e ainda por observadores que estivessem na galeria acima dele, no primeiro pavimento.

Possuía um mosaico de mármores ao centro, rodeado pelo mobiliário dos corretores, secretários e presidente em imbuia sob um estrado de jacarandá. Ao fundo, três grandes obras de Benedicto Calixto –- um tríptico retratando a fundação da Vila de Santos, e duas telas laterais apresentando vistas panorâmicas da cidade em 1822 e 1922. Sobre este nobre salão está o vitral, elaborado pelo mesmo pintor e confeccionado pela Casas Conrado, que será o objeto de estudo deste artigo.

Enquanto nas telas Calixto utilizou da pintura histórica para representar três momentos da evolução urbana de Santos, no vitral intitulado “A Epopeia dos Bandeirantes” ele escolheu uma linguagem simbólica, repleta de alegorias, para apresentar três momentos da história nacional: a descoberta e ocupação do território; a consolidação da agricultura; os avanços da indústria e do comércio. A seguir, apresentaremos como Benedicto Calixto, por meio de seu vitral, contribuiu para a construção da mitologia bandeirante [1] e da identidade paulista dos anos 1920.

Bandeirantes: de vilões a heróis

A palavra epopeia [2] no título do vitral já anuncia uma conotação ideológica sobre o bandeirante. Mas, afinal, quem era esse personagem, e qual sua relação com os paulistas? Como veio a ser evocado com tanta frequência e ardor nos escritos de seus conterrâneos, fossem eles intelectuais, políticos, artistas ou jornalistas, na década de 1920?

A disputa de narrativas sobre os sertanistas coloniais, chamados posteriormente de bandeirantes, precede em muito a produção historiográfica do século XX. Já no XVII, em textos disseminados principalmente por jesuítas espanhóis, eles eram retratados como violentos, impiedosos e escravistas, em função de seus ataques às missões e captura de índios cristianizados. Essa versão foi ecoada por outras vozes no século seguinte, tanto em terras brasileiras como na Europa, configurando a “lenda negra” sobre os bandeirantes (SCHNEIDER, 2014, p.123).

Seu contraponto viria ainda no XVIII com Frei Gaspar da Madre de Deus, um beneditino santista, e de seu primo e Pedro Tasques de Almeida Paes Leme. Ambos buscavam rebater as acusações dos jesuítas e apresentar as origens nobres e os grandes feitos que esses sertanejos empenhavam, estabelecendo assim uma genealogia que ancorasse a fidalguia das próprias elites locais a que pertenciam. Porém, os dois divergiam em um ponto: enquanto Pedro Tasques frisava um sangue puramente europeu, Frei Gaspar reconhecia a miscigenação presente nessa primeira geração de paulistas (FERRETTI, 2004).

No Império, a historiografia indianista buscou centrar no elemento nativo a composição da identidade nacional, e apresentar uma interpretação histórica de sentido centralizador frente as regionalidades. O bandeirante foi novamente criticado e retratado como um ambicioso colono por seu empenho na caça e escravização de indígenas.

Ainda nesse período, uma reavaliação positiva dos bandeirantes viria do historiador cearense Capistrano de Abreu, que, inclusive, se tornaria uma referência entre os historiadores paulistas do começo do século XX, como Affonso de Taunay. Segundo Ferretti:

Capistrano consolidou através de sua obra historiográfica o papel de ideólogo maior da conquista do sertão e do esforço de povoamento e colonização do interior do país, uma vez que transformou este mesmo esforço no princípio explicativo da formação nacional brasileira, uma vez que, para Capistrano, entender o Brasil era entender a ocupação e povoamento de seu território. (FERRETTI, 2004, p.139).

Para o autor, sua importância se deu principalmente por reabilitar o bandeirante não só a nível regional, mas nacional ao liga-lo a configuração do território nacional. Esse argumento seria apresentado posteriormente pelos intelectuais paulistas como uma consequência positiva — por vezes apresentada até mesmo com intencionalidade — das bandeiras, superando os inegáveis aspectos negativos das mesmas, como sua violência e aprisionamento de índios, reconhecidos até mesmo por Capistrano.

Esse pensamento acompanhou a busca dos paulistas republicanos nos anos 1880 por uma identidade regional própria frente a nacional apresentada pela Corte, e de um projeto político federalista em meio ao sistema imperial já em decadência. Essas ambições eram sustentadas por um crescimento populacional, econômico e cultural decorrentes da atividade cafeeira paulista.

Essa visão sobre o passado regional foi institucionalizada na criação do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (IHGSP), em 1894, já na República e em clara oposição ao instituto brasileiro. Segundo Lilia Moritz Schwarcz:

[…] se cada instituto selecionou imagens diversas para a mesma história, no exemplo paulista houve claro predomínio temático do fenômeno do bandeirantismo. Os historiadores paulistas foram os responsáveis pela valorização e popularização da figura do bandeirante, introduzindo uma interpretação ainda presente na historiografia oficial. Nesta se estabelece uma relação entre a atitude valente e laboriosa daqueles primeiros aventureiros e um suposto perfil do estado de sua trajetória vitoriosa. (SCHWARCZ, 1993, p.132).

Mais do que uma interpretação histórica favorável ao bandeirante, lhes era conferido características que as elites paulistas atribuíam a si próprias, como a valentia, resiliência e modernidade. Era uma leitura do passado que favorecesse as ambições políticas de uma hegemonia paulista perante o conjunto nacional.

Essa atribuição simbólica ao bandeirante não se limitou ao Instituto. Pesquisando em jornais e periódicos paulistas no final do século XIX e começo do XX, como no republicano Correio Paulistano[3], é possível observar uma crescente associação da palavra bandeirante aos paulistas, e também com os valores já citados. Termos como “terra bandeirante”, “audácia bandeirante”, “energia bandeirante” passam a ocupar com frequência as colunas jornalísticas e discursos oficiais.

Como explica Ana Claudio Fonseca Brefe:

O adjetivo “bandeirante” se originou portanto do substantivo que lhe foi anterior. Como sinônimo de paulista, ligava esta designação ao substantivo, isto é, ao fato histórico das bandeiras. Nesta ligação se vislumbra toda uma evocação de um passado que se associa a determinados indivíduos, um significado histórico; se paulista tem uma base geográfica, bandeirante tem como base uma tradição; e quem diz tradição não diz somente outros tempos, mas também crenças, pensamentos, sentimentos, aspirações que perpassam as gerações como legados permanentes, estabelecendo entre elas como que uma comunhão espiritual. O adjetivo “bandeirante” se encontra, pois, pleno de um sentido simbólico. (BREFE, 2005, p.188–189)

Em meados da década de 1910, com a proximidade das Comemorações do Primeiro Centenário da Independência, os esforços para cunhar uma história e identidade nacional se acirraram, tanto em São Paulo quanto no Rio de Janeiro, principalmente por meio da produção literária, historiográfica e da imprensa. A intelectualidade paulista buscou desqualificar a Capital Federal, intimamente ligada ao passado monarquista, e se apresentar como símbolo do progresso e modernidade, e representante dessa nação em construção. (BREFE, 2005, p.143–144)

Além da vasta bibliografia específica sobre o tema produzida pelo IHGSP, e dos discursos veiculados pelos jornais, a estética do bandeirante passava a ser construída, principalmente a partir do acervo do Museu Paulista. Inaugurado em 7 de setembro de 1895 como um museu de ciências naturais, ele foi restruturado na gestão de Affonso de Taunay — ativo membro do IHGSP –, a partir de 1917. Seu caráter histórico foi reforçado, com espaço privilegiado à memória paulista e seus heróis, os bandeirantes.

Taunay estabeleceu correspondência com diversos artistas que ficariam encarregados da produção das pinturas históricas, retratos e esculturas, dentre eles, Benedicto Calixto. Mais do que tratar de prazos e preços, ele algumas vezes conduzia a própria confecção das encomendas, sugerindo fontes, composições e até mesmo modificações nas obras em andamento.

Nesse círculo de intelectuais e artistas se consolidava uma história e estética bandeirante que seria reproduzida por décadas e ainda permeiam a imagem que temos desses personagens até os dias atuais.

A construção da imagem do bandeirante

Imagem 1 — Domingos Jorge Velho e o Loco-tenente Antônio F. de Abreu. Acervo Museu Paulista.

No momento da elaboração das telas, Calixto já gozava de reconhecimento pelo seu trabalho e havia produzido retratos, paisagens e cenas históricas para o Museu Paulista. Diferente das obras de pintores viajantes, que retratavam o que “testemunhavam” com seus próprios olhos, grande parte da produção de Calixto eram interpretações de eventos e paisagens passadas.

Sua prática enquanto pintor raramente dissociava-se de seu ofício de historiador, utilizando-se constantemente de fotos, como as de Militão Augusto de Azevedo, desenhos como os de Hercule Florence, cartografias, inventários e outros documentos pesquisados em arquivos públicos, além da tradição oral. Por meio da investigação científica, comum na pintura histórica, pretendia-se distanciar o caráter fictício, de exaltação, e legitimar a pintura enquanto documento. Essa viria a se tornar uma das especialidades de Calixto, juntamente com a pintura de paisagem.

Seu ingresso no IHGSP em 1895 foi bastante significativo para a sua formação nesse quesito, principalmente pelo intercâmbio de ideias com os estudiosos de história da época, como Affonso d’Escragnolle Taunay, Capistrano de Abreu, e Washington Luís, em um movimento de construção e valorização da identidade paulista.

Durante todo o período de produção das telas e projeto do vitral para a Bolsa de Café, manteve correspondência constante com estes intelectuais, em especial, com Taunay, Diretor do Museu Paulista e seu amigo. Nessas cartas falavam sobre as encomendas de quadros para a exposição no museu que também seria inaugurada nas comemorações do centenário, além de trocarem informações sobre os avanços de suas pesquisas, documentos históricos e achados de sítios arqueológicos. Por meio desse contato, Calixto mostrava esboços e buscava críticas e sugestões sobre decisões tomadas em suas pinturas.

Essa valorização da opinião de seus pares em sua obra esteve presente também na elaboração da estética do bandeirante. Quando da produção da tela “Mestre de campo Domingos Jorge Velho e seu lugar-tenente Antônio Fernandes de Abreu”, encomendada pelo Governo do Estado de São Paulo para o Museu do Ipiranga, em 1903, Calixto consultou Theodoro Sampaio, Antonio de Toledo Piza e Washington Luís a respeito da indumentária que deveria portar o dito bandeirante.

Piza — que era sócio fundador do IHGSP — publicou uma coluna no Correio Paulistano com as considerações de seus colegas sobre as questões levantadas pelo pintor sobre o destruidor de Palmares. Theodor Sampaio opinou:

“Estou de acordo com o esboço do quadro projectado, e com o modo de representar a figura do famoso paulista. Um quadro histórico referente a uma data tão remota, da qual poucas informações precisas e minuciosas temos sobre o trajar dos homens, tem de ser, por via de regra, uma cousa convencional e aproximada, reproduzindo um pouco do que se sabe ao certo e um pouco dos costumes da época que mais se lhe aproxime.

Ora, não é de crer que Domingos Jorge Velho se apresentasse a batalhar com os seus mamelucos, caracterizado como um mestre de campo. De certo, a parte decorativa equivalente ao seu posto militar não foi exhibida na acção. (…)

Num quadro histórico, porém, não há só a considerar a verdade ou realidade do facto; há também a parte propriamente artística ou do efeito esthetico, há a licção de cousas. Caracterizando o vulto de Domingo Jorge como trajava qualquer sertanejo mais abastado ou a bandeirante, não se conseguirá do quadro a demonstração ou a ideia que se tem em vista alcançar.

É mister, portanto, sacrificar um tanto a realidade a ficção no intuito de se conseguir maior força de expressão. Acho, pois, acertada a sua resolução de caracterizar o famoso vencedor dos Palmares pelo modo pelo qual m’o descreveu.[4]

Sampaio era, portanto, partidário de uma abordagem que conferisse ares mais nobres ao bandeirante, considerando mais o impacto desejado pela encomenda, do que uma visão mais fiel aos indícios históricos. Já na carta de Washington Luís, Calixto recebe um conselho diferente:

Hoje parece-me muito difícil, sinão impossível, determinar com exactidão se Domingos Jorge, na ocasião da tomada dos Palmares, vestia a farda de mestre de campo das tropas regulares portuguezas ou si trajava o vestuário clássico do sertanista de S. Paulo, conquistador dos índios e devassador do sertão.

[…] Elle poderia, pois, estar fardado ou trazer o costume habitual do sertanista, dependendo isso de suas posses, de sua educação, de seu temperamento, de seu modo pessoal de ver as cousas, de sua tendência para a ostentação ou para a simplicidade, da impressão que quisesse produzir nos seus e nos alheios soldados, caso nisso pensasse.

[…] Por temperamento, pelos hábitos e educação, pelas próprias condições dessa guerra singular, Domingos Jorge não poderia estar vestido de sedas e veludos, não se destinguiria pelo fausto do vestuário, mas pela bravura, energia, tenacidade, resistência ao sofrimento, desprezo ao perigo.

Elle deveria estar, sem duvida, com o vestuário clássico do sertanista, do bandeirante, que em resumo é o typo glorioso de S.Paulo. Fardado de mestre de campo das milícias portuguezas, não obstante ter nascido na capitania de S.Paulo, Domingos Jorge Velho seria uma gloria portuguesa; vestido como vestiam os sertanejos, elle, embora colono de Portugal, é uma gloria paulista.[5]

Para ele, as tradicionais vestes de bandeirantes além de serem mais prováveis na ocasião, reforçariam uma associação maior com os paulistas do que com os portugueses. Apesar de discordarem nesse ponto, ambos reconhecem a impossibilidade de se saber com exatidão os detalhes a respeito das imagens desses personagens, devendo trabalhar no campo de hipóteses e deduções. É justamente nessa lacuna documental sobre a aparência dos bandeirantes que seus pintores e escultores encontrariam espaço para uma interpretação e construção mais “livre”.

Washington Luís ainda traz na carta uma descrição de Domingos presente no romance histórico de Joaquim de Paula Sousa — seu descendente — intitulada Os Palmares. O autor teria chegado a esses apontamentos em parte devido a relatos de antigos moradores de Itu, “que tinham razão de saber porque repetiam o que tinham ouvido de seus maiores, numa tradição constante e uniforme”.

Essa falta de fidelidade do personagem retratado devido a ausência de referências seguras não era ignorada pela crítica. Alguns dias depois da publicação das cartas já mencionadas, Alberto Sousa publica no mesmo Correio Paulistano uma análise sobre a referida obra. Apesar de não economizar elogios ao resultado final da pintura e ao progresso da carreira de Calixto, ele afirma:

Parece, realmente, pouco aceitável, executar-se o retrato duma pessoa de cujas feições não existem cópias, mas apenas vagos traços, reminiscências palidamente conservadas pela tradição que provavelmente as alterou, com o decorrer do tempo. Retrato é sempre a copia fiel, a imagem perfeita duma determinada pessoa, ou obtida do próprio original, ou de outra cópia authentica anterior; de forma que o vulto de Jorge Velho, por se não achar neste caso particular, só pode ser dignamente, artisticamente idealizado como figura, no conjunto dum quadro qualquer.[6]

Outras fontes utilizadas para a confecção da aparência dos bandeirantes foram retratos de integrantes de suas linhas genealógicas –- por vezes Taunay fazia o papel de intermediário entre essas famílias e os artistas. Em carta enviada por Calixto ao diretor do Museu Paulista, o pintor conta como se utilizou desse método para o retrato de Carlos Pedrozo da Silveira, que integra o vitral:

O Dr. Telles ja devia ter lhe remettido a reprodução dos retratos dos Bandeirantes, destinados ao vitral da Bolça, desenhos a carvão. Mandar-lhe-hei depois os trez que faltam, que ja estão nas oficinas do Conrado, em S.Paulo. Devem estar “bem parecidos”, principalmente o de Carlos Pedrozo da Silveira que fiz, por uma photographia do pae do Dr. Alarico, que o Dr. Agenor Silveira me arranjou. Elle ficou inttuziasmado — o Dr. Agenor — quando vio o retrato de seu bis-avô: Está explendido e muito parecido! Exclamou.[7]

Imagem 2 — Esboço do retrato de Carlos Pedrozo da Silveira. Acervo Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP).

Os bandeirantes de Calixto não traziam em suas feições traço algum da miscigenação comum ao período colonial e que existiu em algumas de suas biografias –- como de Affonso Sardinha –- optando por homens europeizados, distantes da concepção do sertanista mameluco descrito por Frei Gaspar. Em suas vestimentas, poses e olhares, estavam presentes os valores de nobreza, bravura, e determinação, correspondendo a versão idealizada pelos paulistas.

Com essa contribuição e a de demais artistas nas primeiras décadas dos anos 1900, criou-se um acervo visual sobre o personagem que esteve ausente da produção pictórica do Império. Essas pinturas e esculturas se tornariam, por sua vez, referências para artistas de gerações seguintes.

A saga paulista

No dia 26 de maio de 1921, Benedicto Calixto enviou uma carta a Taunay pedindo seu último livro sobre a História de São Paulo para o auxiliar na elaboração do tríptico encomendado por Roberto Simonsen para a Bolsa Oficial de Café. Na ocasião, ele também informa sobre a elaboração de um projeto para o vitral do mesmo edifício, descrevendo a obra e expressando a necessidade de submeter o esboço ao amigo para ouvir sua opinião antes de enviá-lo a Bélgica, onde o vitral seria executado.[8] No ano seguinte, a obra foi finalizada e instalada sobre o salão do pregão.

O vitral “A Epopeia dos Bandeirantes” se divide em três partes, que se referem a diferentes momentos históricos do Brasil. Ao centro “A visão do Anhanguera, a Mãe D’Ouro e as Mães D’água”, representando o período colonial e a conquista dos sertões pelos bandeirantes; nas laterais “Agricultura e Abundância”, do período imperial, e “Indústria e Commercio” do período republicano. Além disso, é composto por oito bustos de bandeirantes e uma moldura decorada por gêneros agrícolas, fauna, flora, e seres do folclore brasileiro.

Imagem 3 — A Visão do Anhanguera, vitral central d’A Epopeia dos Bandeirantes”. Acervo Museu do Café.

Segundo Calixto[9], no livreto em que apresenta sua obra, a primeira cena, representando o “ciclo do ouro e das esmeraldas”, pretendia remeter a um episódio atribuído a Bartholomeu Bueno da Silva, o Anhanguera. Tendo observado a existência de ouro no sertão de Goiás, e não conseguindo a localização das minas pelos indígenas, Bartholomeu teria tacado fogo em uma vasilha com aguardente, ameaçando, então, incendiar todo o rio caso eles não cooperassem (CALIXTO, 1922, p.7–8). O evento, que mostraria a “diabólica astúcia” do bandeirante, foi representado também por elementos do folclore brasileiro.

Ao colocar Anhanguera e seu filho em primeiro plano, Calixto reforça a intenção — expressa no título da obra — de mostrar a cena sob a perspectiva do bandeirante. A figura central é a Mãe D’ouro, que simboliza as riquezas que o sertão guardava, envoltas em misticismo. Era uma lenda cabocla presente no sudeste e centro oeste-brasileiro, principalmente em cidades mineradoras.

Descrita pelos populares como uma bola de luz ou fogo — versão representada pelos raios dourados em suas costas -– ela surge nua em meio a chamas definidas como “boitatás”, mito indígena para o fenômeno dos fogos-fátuos. Os jatos de luz que saem de sua cabeça são bólidos — fragmentos de matéria que explodem na atmosfera — que, segundo a interpretação popular evocada por Calixto, seriam manifestações da Mãe D’ouro.

As Mães D’água que recebem as pepitas de ouro, são retratadas metade mulher, metade peixe, descritas pelo pintor como náiades e limoniades, ninfas protetoras das águas na mitologia grega. São uma representação mítica da ação erosiva das águas que desprendem as pedras preciosas dos montes e as depositam em aluviões nos rios e lagos. Tanto essas personagens, como a Mãe D’ouro se assemelham às composições do renascimento italiano[10], e possuem feições europeias, diferente do que se imaginaria de uma lenda cabocla.

No plano intermediário –- entre a Mãe D’ouro, as Mães D’água e o Anhanguera — estão os guardiões dos tesouros: animais ferozes e o índio Payaguá, a quem Calixto se refere como “o mais temível desses monstros”. A moldura central, diferente das auxiliares, apresenta criaturas descritas como sendo “duendes e gênios maus da floresta”.

A natureza e seus elementos aparecem como agressivos e intimidantes, algo a ser dominado, vencido. Ao criar esse ambiente hostil ao homem branco, Calixto buscou exaltar as características atribuídas ao mito do bandeirante como coragem, esperteza e resiliência.

Ao final da descrição da cena, Calixto faz um balanço desse período. Para ele “da procura dos thesouros resultou a penetração e conquista do vasto sertão, a expansão territorial” (CALIXTO, 1922, p.11). Porém, avalia um aspecto negativo do ciclo do ouro, que teria despovoado a província e tirado braços da lavoura.

Imagem 4 — Agricultura e Abundância, vitral lateral d’A Epopeia dos Bandeirantes. Acervo Museu do Café.

Na cena seguinte, Calixto escolheu a agricultura — principalmente a cafeeira — para representar o período imperial. Simbolizando as recompensas que a terra podia oferecer às pessoas dispostas a trabalhar nela, a figura central — um gênio feminino representando a lavoura — está à frente de uma grande propriedade rural oferecendo riquezas aos colonos, enquanto uma representação da Abundância pousa as mãos em cima de gêneros agrícolas e frutas tropicais.

No texto descritivo dessa cena, ele estabeleceu uma relação direta com a anterior:

Os bandeirantes paulistas, já desacôrôçoados e fatigados pelas aventuras e pela rudeza da vida nômade do sertão, se retrahem ante os “amáveis convites” e as “attrahentes munificências” com que lhes acenavam, ainda os soberanos da metrópole; e desiludidos, voltam aos seus lares, então empobrecidos e abandonados. A lavoura, estiolada e quase extincta, ressurge então vigorosa pelo labor daquele mesmo braço forte que, até então, só soubera manejar a batéia e o facão do matto, a espada e o mosquete. (CALIXTO, 1922, p.12)

Enquanto criticava o governo colonial por ter iludido os paulistas com promessas e não o terem recompensado adequadamente pelos seus esforços empreendidos, o artista atribui ao bandeirante a retomada da lavoura. Embora cite a abolição da escravatura como um precedente do “surto de progresso” que se seguiria, já ao fim do período Imperial, Calixto não faz qualquer referência — textual ou visual — ao trabalhador escravizado, escolhendo o imigrante como um símbolo do trabalho e desse “ciclo de Abundância”.

Imagem 5 — Indústria e Comércio, vitral lateral d’A Epopeia dos Bandeirantes. Acervo Museu do Café.

A última parte, retratando o período republicano, foi ambientada no Porto de Santos, à época a principal porta de saída de mercadorias e entrada de trabalhadores. Sob um pórtico — que segundo Calixto representava a Bolsa Oficial de Café — interagem quatro figuras: ao centro, uma representação feminina da Indústria e do Comércio oferece um cofre com valores a outra representação feminina alusiva à Pátria; à direita, dois operários, sustentando os símbolos da indústria e do trabalho, observam a cena.

No plano de fundo está o cais modernizado com guindastes e locomotiva, além de navios a vapor e um aeroplano, simbolizando os avanços industriais e tecnológicos que caracterizaram esse período. Uma ode ao progresso, característica vista em outras obras do pintor ao retratar o porto. Em sua cartilha sobre a obra, Calixto estabelecia uma conexão com as cenas anteriores:

Este terceiro cyclo é a consequência natural do imediato: pois o desenvolvimento das diversas culturas nas terras conquistadas e desbravadas pelos bandeirantes, sobretudo o grande desdobramento da lavoura do café em zonas até então despovoadas, deveria forçosamente, acoroçoar e promover o incremento da Industria e do Commercio […] (CALIXTO, 1922, p.13)

Os retratos dos bandeirantes que complementam as cenas e integram as molduras são: Braz Cubas, Affonso Sardinha, Bartholomeu Bueno da Silva, Fernão Dias Paes Leme, Domingos Jorge Velho, Carlos Pedrozo da Silveira, Antonio Raposo Tavares e Paschoal Moreira Cabral.

Imagem 6 — Busto de Antonio Raposo Tavares

Não cabe, neste artigo, se aprofundar em suas biografias individuais. Mas, de forma geral, são homens que ficaram conhecidos pela descoberta de ouro e pedras preciosas, ou pelo combate e apresamento de índios. O motivo da escolha desses nomes foi por representarem as “principais entradas e descobrimentos no sertão desde 1556 e 1722” (CALIXTO, 192, p.14) — reforçando a ideia de contribuição dos sertanistas na configuração do território. Alguns deles também foram homenageados em esculturas por Taunay no Museu Paulista, escolhidos pelos mesmos motivos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Calixto apresentava uma versão da história nacional com o protagonismo paulista. Tudo teria começado com os bandeirantes, que teriam traçado o caminho para grande lavoura do café e a industrialização da província que se sucedeu. A obra está alinhada também ao desejo da elite paulista em se ver como sucessores desses aclamados heróis: o fazendeiro, o comerciante e o industrial, são os repositórios dos altos valores bandeirantes, como a coragem, a persistência, o empreendedorismo e a modernidade.

Como lembra Emerson Dionísio em seu artigo sobre a contribuição de Calixto ao mito bandeirante, o pintor não teve muitas obras dedicadas a representação iconográfica desses personagens, pois estava mais empenhado na representação da história e na “invenção” de uma paisagem do litoral paulista. As exceções seriam justamente o retrato de Domingos Jorge Velho e A Epopeia dos Bandeirantes (OLIVEIRA, 2008, p.128).

O vitral difere de sua produção também por não buscar uma representação histórica e um caráter documental como em seus outros trabalhos. Apesar de buscar uma interpretação da história nacional sob a perspectiva paulista, Calixto escolheu uma abordagem fantástica, cheia de alegorias, misturando aspectos de uma mitologia europeia clássica a elementos mitológicos, fauna e flora brasileiros. Essa composição, somada a luminosidade tropical proporcionada pelas cores de vidros escolhidas, denotam uma intenção de atribuir uma brasilidade a obra, ainda que em moldes conservadores.

Esta obra é ainda pouco estudada, apesar de grande expressividade na construção da figura bandeirante, talvez por não integrar o conjunto gestado para o Museu Paulista e por não ter recebido muita atenção da crítica de arte de sua época. De toda forma, é uma valiosa contribuição de Calixto para o imaginário paulista que se configurava perante as Comemorações do Primeiro Centenário da Independência, e somado a outras obras de pintura histórica de sua autoria, nos ajuda a entender o papel do pintor nessa construção.

Referências:

ALVES, Caleb Faria. Benedito Calixto: e a construção do imaginário republicano. Bauru: EDUSC, 2003.

BREFE, Ana Claudia Fonseca. O Museu Paulista: Affonso de Taunay e a memória nacional (1917–1945). São Paulo: UNESP, 2005.

CALIXTO, Benedicto. Carta a Affonso de Taunay, 24 de fevereiro de 1922. Arquivo do Museu Paulista.

________________. Carta a Affonso de Taunay, 26 de maio de 1921. Arquivo do Museu Paulista

________________. A epopeia dos bandeirantes. Casa Conrado: São Paulo, 1922.

FERRETTI, Danilo José Zioni. A construção da paulistanidade: identidade, historiografia e política em São Paulo (1856–1930). Tese (Doutorado em História Social). Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004.

MELLO, Regina Lara Silveira. Casa Conrado: cem anos do vitral brasileiro. Dissertação (Mestrado em Artes). Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1996.

OLIVEIRA, Emerson Dionísio G. de. Instituições, Arte e o Mito Bandeirante: uma contribuição de Benedito Calixto. Sæculum — Revista de História, n. 19, p.127–148. João Pessoa, 2008.

PIZA, Antonio de Toledo. Os Palmares. Correio Paulistano, 28 de fevereiro de 1903, p.1–2

SCHNEIDER, Alberto Luiz. A (disputa de) imagem dos sertanistas de São Paulo na era colonial: entre a lenda negra e a lenda dourada. Revista do IHGSP, Vol. XCVIII, p.117–136. São Paulo, 2014.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870–1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

SOUZA, Alberto. Jorge Velho. Correio Paulistano, 10 de março de 1903, p.1.

SOUZA, Ricardo Luiz de. SOUZA, R. L. DE. A mitologia bandeirante: construção e sentidos. História Social, n. 13, p. 151–171. Campinas, 2007.

[1] Termo utilizado no sentido em que lhe atribuiu Ricardo Luiz de Souza em seu artigo “A mitologia bandeirante: construção e sentidos.”, ou seja, um conjunto de narrativas e tradições referentes à imagem do bandeirante enquanto fundador da nacionalidade e enquanto símbolo do paulista.

[2] Poema épico que narra as ações e grandes feitos de heróis.

[3] Consultados na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.

[4] Os Palmares. Correio Paulistano, 28 de fevereiro de 1903, p.1.

[5] Os Palmares. Correio Paulistano, 28 de fevereiro de 1903, p.1–2.

[6] Jorge Velho. Correio Paulistano, 10 de março de 1903, p.1.

[7] CALIXTO, Benedicto. Carta a Affonso de Taunay, em 24 de fevereiro de 1922.

[8] CALIXTO, Benedicto. Carta a Affonso de Taunay. 26 de maio de 1921.

[9] A Casa Conrado publicou um livreto para ser entregue aos visitantes da Bolsa de Café na ocasião de sua inauguração. Além de um prefácio de Conrado Sorgenicht, ele traz a apresentação de Calixto sobre sua obra, explicando sua composição e suas alegorias.

[10] Na dissertação de mestrado “Casa Conrado: Cem anos de vitral brasileiro”, Regina Lara Silveira Mello faz uma relação dessa personagem com a pintura “O Nascimento de Vênus” de Sandro Botticelli.

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Museu do Café

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