“Bolsa do samba”: notas sobre o Café Nice

Museu do Café
11 min readDec 21, 2023

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Por Bruno Bortoloto do Carmo, Pesquisador e historiador do Museu do Café

Revista Dom Casmurro, 1940. Na edição do dia 6 de janeiro uma matéria especial assinada por Custódio Mesquita aparecia na página 8 intitulada “Fazedores e Compradores de Sambas”:

O “fazedor de sambas” precisa resolver o problema da “media” e do “pão com manteiga”.

E a fome, inspira-o.

Ele então, faz um samba.

E conta no samba, que a “cabrocha” fugiu… e aparece-lhe para seu tormento, como uma visão nas nottas de lua…

É mentira do “fazedor de sambas”.

“Cabrócha” quer dinheiro, e ele não o tem.

Quem não tem dinheiro, não tem “cabrocha”, que é “objeto de luxo”.

A visão que perségue, não é da “cabrocha” e sim a visão de um tal “são Manuel” que é o dono do cortiço onde mora o “fazedor de sambas” e que quer receber “uns tratrazados”.

E dessa miséria, é que nasce a inspiração, que ele vai vender ao “comprador” de sambas, condenada em alguns versos banais, chulos e quebrados.

A “propriedade do comprador”, logo se faz notar.

A “anemia” do “fazedor” também.

E assim vão vivendo, “fazedores” e “compradores”.

Um inteligente cronista apelidou o Café Nice de Bolsa do Samba.

E o apelidou muito bem.

Em algumas mesas do elegante café da Avenida, “fazedores”, com os dedos tamborilam no chapéu de palha e cantarolam baixinho.

Estão “fazendo”.

Em outras mesas, os “compradores”, geralmente bem vestidos, tudo observam, fingindo despreocupação.

De repente, o “fazedor” dirige-se ao “comprador”, segreda-lhe no ouvido e senta-se junto ao “capitalista”.

Confabulagem misteriosamente, por algum tempo.

O “comprador”, mete a mão no bolso com superioridade e abrindo a carteira retira vinte mil téis (notas grandes!), que dá arrogantemente enfadado, ao “fazedor”. Este guarda-a apressadamente e levanta-se para voltar a sentar-se onde estava antes da “transação”

O “comprador” pede ao garçon um café pequeno, e toma-o saboreando calmamente. Disseram-lhe que o café é um ótimo estimulante, e um “homem de negócios” precisa sempre de “estimulo e estimulantes”.

O “fazedor” pede uma “media com pão e manteiga”. Disseram-lhe que quem “trabalha com a cabeça” precisa de “alimentar-se bem”.

As estações de radio lançam aos quatro pontos cardeais o samba que faz um grande sucesso. O “comprador” tem um lucro esplendido e o “fazedor” continua no “miserê”… Toda a vez que o “speaker” anuncia o nome do autor do samba de sucesso (que não é o nome do fazedor e sim do comprador”), uma punhalada forte e segura, vibrada pelas mãos do Odio e da Fome, atravessa o estomago do infeliz “fazedor” de sambas. E então ele jura que nunca mais venderá a sua produção. Mas, no dia seguinte, lá está humildemente na mesa do “comprador”, o “fazedor” procurando negociar a sua ultima producção, que se intitula: “Quebrei a jura”… [1]

Imagem 1 — Matéria intitulada “Mercado do Samba”, publicada no Carioca (RJ), ed. 00105, p.46. Acervo Biblioteca Nacional. Agradeço à Eliane Vilela Antunes, museóloga do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, que fez chegar até nós essa matéria.

O Café Nice, apesar de hoje por muitos quase esquecido, foi um dos locais mais importantes para a música brasileira, principalmente o samba e a bossa nova. Aberto em 1922, tornou-se icônico pela frequência de grandes compositores entre as décadas de 1930 e 1940. Entre os frequentadores figuravam nomes como Ary Barroso, Noel Rosa, Silvio Caldas, Araci de Almeida, Francisco Alves, Benedito Lacerda, Orlando Silva, Carlos Galhardo, João Petra de Barros, Paulo Apaché, Lui Barbosa, Mario Reis, Carmen Miranda (essa só muito ocasionalmente)… enfim, a lista é longa.

Clássico Café dessa época do Rio de Janeiro composto de mesinhas de mármore e cadeiras de palhinha, o Nice não nasceu para a fama. Pelo menos, não logo de cara. Em matéria do Correio da Manhã de 1950, quando o Nice já não era mais “Quartel General do Samba”, contava-se um pouco da sua história até chegar aos tempos áureos dos anos 1930 e 1940.

NASCIMENTO E TRANSFORMAÇÃO DO NICE

Surgido como “Casa Nice” em 1922, era administrado nessa época pela firma Silva Pedreira & Cia e ficava localizado em local nobre, em plena Avenida Rio Branco nº 174, onde hoje está localizado o edifício da Caixa Econômica Federal no Largo da Carioca. Segundo relato do gerente do Café na época, a matéria contava que seu início foi “empafiado, autêntica representante da casaca e cartola”. Era lá que as mocinhas da alta sociedade, trajando vestidos de seda japonesa confeccionados em Paris iam acompanhados de suas “babás” (i.e. pessoas que iam vigiá-las por questões de decência). Lá, tomavam seus cafés e sorriam disfarçadamente por trás de leques para os bonitões grã-finos apertadinhos e faziam a social.

Imagem 2 — Ilustração do Café Nice. Autor desconhecido. Vamos Lêr! (RJ). 05 set. 1940, p.43. Biblioteca Nacional.

Mas o ambiente do Café começou a mudar já no fim da década de 1920. Num movimento bastante comum dos cafés e botequins chiques da cidade. Aos poucos esses locais iam se tornando ponto de boêmios; no caso do Nice, uma boemia artística. A partir da década seguinte (e por uns bons quinze anos), esse foi o grande ponto de encontro daqueles que buscavam emplacar um novo sucesso no rádio ou apenas ganhar a féria da semana, vendendo uma ideia de um samba novo para algum engravatado da rádio.

Igual ao Café Papagaio, que também abrigava músicos da boemia carioca, o Nice passou a ser buscado pelos compositores e sambistas devido — segundo diziam — a busca de um ambiente menos intelectual, visto que aquele estabelecimento era frequentado por escritores e cronistas.

O lugar rapidamente se tornou conhecido, como já disse, na “Bolsa do Samba”. Um novo sucesso podia estar sendo gestado em meio a um batuque numa caixinha de fósforos, num pires de xícara de café ou num copo d’água. Antônio Nassara, um frequentador assíduo, compositor e também caricaturista e ilustrador, fez uma das representações imagéticas mais icônicas do Café Nice. Nela, fez questão de desenhar figurinhas carimbadas do lugar:

Orestes Barbosa, Cristovão de Alencar e Jorge Faraj ocupam a “primeira à esquerda”; Alberto Ribeiro, Lamartine Babo e Ary Barroso, estão na “do centro”; Wilson Batista e Rubens Soares enchem a “terceira à direita”…

Imagem 3 — Ilustração de Antônio Nassara publicada no periódico Dom Casmurro (RJ). 18 set. 1943, p.1. Biblioteca Nacional.

NEGOCIAÇÕES E FURTOS DE IDEIAS

Antonio Nassara foi compositor, junto com Haroldo Lobo, da famosa marchinha de carnaval Ah-la-la-ôh. O carnaval, por sinal, era período fértil para os compositores do Nice, que ficavam em polvorosa na possibilidade de emplacar o sucesso da folia do ano seguinte. É inclusive nesse contexto que outra característica do Café Quartel General do Samba emerge: os furtos de ideias.

No livro Memórias do Café Nice, escrito em primeira pessoa, o frequentador, jornalista e cronista Nestor de Holanda descreve um desses casos ocorrido exatamente com Haroldo Lobo e ele mesmo com uma ideia para marchinha de carnaval.

Haroldo Lôbo foi o maior compositor do carnaval carioca — e não há dúvida de que ficou devendo muito à caitituagem de seu parceiro e compadre. O volume de sucessos por êle adquiridos supera o de qualquer outro, inclusive contando com Lamartine Babo. Certa vez, me confessou:

– Começo a compor, durante o carnaval para o ano seguinte. No calor da festa, a inspiração chega mais facilmente.

Éramos amigos, desde que cheguei ao Rio. Lembro-me de que, algumas noites, fui à residência de Silvia e Leônidas Autuori, na Urca, onde se reuniam artistas, jornalistas, intelectuais. Casa alegre, aberta aos visitantes. No meio da noite, aparecia para tomar um cafezinho, o guarda daquele setor. Não bebia, porque estava de serviço, mas sempre comia alguma coisa. Participava da conversa e, não raro, mostrava composição sua. Era Haroldo Lôbo, o guarda da Polícia de Vigilância.

Uma tarde, encontrei, na Galeria Cruzeiro, o autor teatral José Vanderlei. Disse-me:

– Você, que faz música de carnaval, quer um tema que eu pensei?

– Diga lá.

– “Quem tem culpa, tem medo”. Dá duplo-sentido bem carnavalesco…

Momentos depois, vi Haroldo Lôbo, no Nice, sentado, sozinho. Fui logo propondo:

– O José Vanderlei me deu um bom motivo carnavalesco: “Quem tem culpa, tem medo”. Vamos fazer?

Haroldo me alertou:

– Não fale. A idéia é ótima! Se alguém ouvir, vai roubá-la. Parece até que você não conhece o Nice!

Olhei em volta e não achei nenhum compositor. Havia adiante, em outra mesa, apenas um velhinho, inteiramente desconhecido, estranho ao meio. Comentei:

– Calma, Haroldo. Ninguém me ouviu.

– Até as paredes do Nice têm ouvidos para roubar idéias…

Tomamos o cafezinho, conversamos mais um pouco e êle decidiu:

– Vamos a um lugar qualquer, onde possamos ficar a sós, para fazer essa marcha.

Fomos à sociedade Brasileira de Autores Teatrais, pensando em encontrar sala vazia onde nos pudéssemos isolar. Logo à entrada, demos com Zé da Zilda. Chamou-nos:

– Vejam o tema que estou com êle para o carnaval.

Cantou:

– “Quem tem culpa, tem medo”…

Haroldo perguntou, surpreso:

– Quem te deu essa idéia?

– Foi um pobre de um velhinho, que veio agora do Nice. Até larguei 20 cruzeiros de gorjeta…

Haroldo me olhou, indignado:

– Eu não te disse? [2]

FUTEBOL E SAMBA

As marchinhas de carnaval lembram um outro tema que tinha tudo a ver com o Café Nice: o futebol. Boemia, samba e boleiros tinham tudo a ver, e os grandes jogadores dessa época também frequentavam o lugar por proximidade e amizade com os compositores. Leônidas da Silva, Domingos da Guia e Fausto dos Santos, astros do Flamengo nos anos 1930, eram figurinha carimbada também por lá.

E o que marchinha tem a ver com isso, né? A resposta é: Lamartine Babo. Foi ele o grande responsável pelos hinos populares dos quatro grandes e principais clubes de futebol do Rio de Janeiro (Flamengo, Fluminense, Vasco da Gama e Botafogo), compostos nos anos 1940. Hinos populares, pois não eram os oficiais, mas marchinhas populares cantadas nos estádios.

Mas não era só de glamour que vivia o Café Nice. Compositores muitas vezes vendiam a média para pagar o cafezinho ou o pão com manteiga do dia seguinte. Raríssimos eram os casos dos que viviam somente de suas composições. Eram regra, não exceção, os casos de compositores de grandes sucessos que tinham as profissões mais diversas — sem contar aqueles que morreram sem um tostão furado, nada ou pouco recebendo de suas composições.

Nestor fez em seu livro uma lista de frequentadores/compositores que tinham um emprego que os mantinha além do trabalho criativo. Seja como instrumentistas ou cantores contratados por rádios, como Pixinguinha ou Dorival Caymi, até pessoas como Haroldo Lobo que era guarda de polícia ou Antonio Nassara que era ilustrador e diagramador; o fato é que ninguém vivia de direitos autorais e, quando precisavam de dinheiro, a moeda de troca mais fácil era uma nova composição.

O caso mais emblemático talvez fosse de Ari Barroso e seu famoso samba-exaltação Aquarela do Brasil, uma das músicas brasileiras mais executadas no exterior. Nestor de Holanda explica a situação:

Para se ter idéia do que lucra o autor com suas produções divulgadas nos Estados Unidos, tomemos por exemplo o caso de Ari Barroso, que é, sem dúvida, o compositor nacional mais executado no estrangeiro.

Do dinheiro que rendem as músicas do autor de Aquarela do Brasil na terra do Tio Sam, 50% ficam com o editor norte-americano. Dos 50% que restam, outros 50% são tirados para o autor da letra impressa ou gravada, ou melhor, o autor da versão, ficando, para o dono, 25%…

Mas êsse dinheiro só viria para as suas mãos se êle estivesse nos Estados Unidos, sem nenhum outro contrato com editor brasileiro. Ari Barroso, como os demais, têm contrato com editor brasileiro. Logo, seu dinheiro é enviado para o Brasil. Resultado: da parte que lhe cabe em seu próprio dinheiro, êle ainda paga 14% de impostos…

Isso pra quem conseguia fama internacional, imagina pra quem não. Ainda sim, Ari Barroso terminou sua vida de forma relativamente confortável. Diferente de outro autor de um famoso samba-exaltação da época, André Filho. Ele compôs a famosa Cidade Maravilhosa, que inclusive virou hino do Estado da Guanabara. Segundo Nestor de Holanda, o compositor quando sexagenário sofria de distúrbio nervoso e não tocava mais piano; só não foi “atirado como indigente num hospital qualquer” pois era membro de uma ordem religiosa que interviu por ele.

PRESENÇA FEMININA

O Café Nice também foi eternizado, mesmo que sutilmente, em uma música de Noel Rosa. Na música Positivismo, a última estrofe tem esses versos:

A intriga nasce num café pequeno
Que se toma para ver quem vai pagar

Para não sentir mais o teu veneno
Foi que eu já resolvi me envenenar

O Café era conhecido pelos “venenos” que moravam em cada mesa; pessoas que, com língua afiada, destilavam os boatos mais ferinos contra qualquer um que estivesse por lá. Se fosse só por isso, boatos e maldades por certo acontecem em qualquer círculo, não é mesmo? Mas as crônicas que apresentavam os tais “venenos” mostram e reiteram o que já deve ter ficado claro até aqui: o Nice era um ambiente masculino por excelência e frequentado por mulheres à revelia disso. Certamente cantoras aspirantes e de sucesso, como é o caso de Aracy de Almeida que era habitué do lugar, devem ter sofrido poucas e boas com os línguas de cobra.

DESPEJO E DEMOLIÇÃO

Por fim, o Nice sofreu do mesmo mal que todos os Cafés brasileiros no período do pós-guerra. A maioria dos donos começou a reclamar daqueles que faziam o sucesso do próprio estabelecimento. As longas “palestras” e processo criativo de horas a fio nas mesinhas ao preço de um café acompanhado de um copo d’água atravancava a rotatividade do negócio que, segundo diziam, já vinha dando prejuízo por conta do tabelamento do preço do café pelo governo Vargas.

Nos anos 1940 o Nice tirou as mesas e instalou um balcão, virando o que se chamava na época de “café-em-pé”. Os antigos frequentadores começaram a rarear, dizendo que era impossível compor um samba tomando café apressadamente no balcão e aos encontrões da pessoa de trás que queria também pegar sua xícara. Mesmo com espaço rotativo, o local começou a acumular dívidas e sofreu despejo judicial em 1954. O edifício foi a leilão, demolido e um arranha-céu construído no local. No mesmíssimo ano foi composta por Arnô Provenzano e Otolindo Lopes a música do começo desse texto.

Após seu fim, o Café Nice foi homenageado por seus frequentadores e marcado na memória daqueles que viveram a Era do Rádio dos anos 1930 e 1940. Deixo depoimento de Antonio Nassara no famoso programa Ensaio da TV Cultura nos anos 1970, no qual contou um pouco sobre suas memórias do Café Nice:

O apego dos frequentadores às mesinhas do Nice era tanto, que pelo menos dois de seus assíduos frequentadores resolveram adquiri-las para seu acervo particular. Aracy de Almeida e Henrique Foréis Domingues, também conhecido como Almirante, garantiram que um pedacinho da memória do antológico Café não se perderia após o despejo. A imagem abaixo, publicada em 1956 pela revista Radiolândia tinha a seguinte legenda: A mesa comprada por Aracy de Almeida pertencente ao antigo café Nice. “Foi como se Aracy salvasse de um leilão, à última hora, o móvel mais estimado de sua casa”.

Imagem 4 — Imagem publicada na revista Radiolândia, 1956, p.22. Acervo da Biblioteca Nacional. Agradeço à Eliane Vilela Antunes, museóloga do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, que fez chegar até nós essa matéria.

Infelizmente não sabemos o destino da mesa que Aracy de Almeida adquiriu para seu acervo pessoal, visto que não teve filhos nem deixou herdeiros. Todavia, a mesa e cadeira que Henrique Foréis Domingues, o Almirante, adquiriu integra hoje o acervo do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, que preserva esse pedacinho importante da história dos cafés brasileiros.

Imagem 5 — Mesa e cadeira do antigo Café Nice, preservada pelo Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro e acondicionada na unidade da Praça XV. Foto do autor.

[1] Dom Casmurro (RJ). 06 jan. 1940, p.8. Acervo Biblioteca Nacional.

[2] HOLANDA, Nestor. Memórias do Café Nice: subterrâneos da música popular e da vida boêmia do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Ed. Conquista, 1969.

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