Pianistas de Armazém: memórias do trabalho feminino em catações de café no Porto de Santos (SP)
Bruno Bortoloto do Carmo*
RESUMO: Durante os anos de 2011 a 2013, os pesquisadores do Museu do Café desenvolveram um projeto de História Oral que visou mapear e estudar a estrutura do comércio do café na cidade de Santos, São Paulo. Intitulado “Memórias do Comércio do Café de Santos”, buscou as práticas cotidianas dessa atividade por meio da escuta de trabalhadores (em geral aposentados) ligados à sua cadeia produtiva na cidade. Este projeto abrangeu uma série de depoentes que dedicaram parte de suas vidas a esses ofícios e, dentre eles, esta comunicação focará em um dos trabalhos considerados “de mulher”: as catadeiras de café. Trabalho penoso, árduo, legado a mulheres pobres e, em geral, invisível, a presente comunicação objetiva analisar as memórias de duas trabalhadoras de armazéns de catação de café — Maria Dias Carvalho e Ana Gessi Penedo — e a memória de Nilton Manso Branco, ex-dono de armazém de catação. Tais memórias serão cruzadas com outros tipos de documentação e textos de autoras como Margareth Rago e Maria Izilda Santos de Matos, referências no estudo de gênero, buscando trazer à luz um ofício que se extinguiu e até hoje é pouco estudado.
INTRODUÇÃO
A cidade de Santos, no estado de São Paulo, viveu momento de grande protagonismo do comércio do café durante a virada do século XIX e praticamente todo o século XX. O comércio exportador desse produto marcava as feições da cidade a ponto de, em publicação de 1922, William Uckers, historiador estadunidense, descrevê-la como a “cidade do café”[1].
Ainda em 1922, foi inaugurado o palácio da Bolsa Oficial de Café, criado para abrigar uma instituição estatal centralizadora do comércio exportador do grão, mas ele próprio um edifício que visava propagandear um momento de grande esplendor do café no Estado de São Paulo. Em 1998, o palácio da Bolsa passou a sediar o Museu do Café, instituição criada por corretores e exportadores ligados ao comércio exportador do café e, naquele momento, queriam manter o símbolo da memória dessa atividade.
Durante os anos de 2011 a 2013 os pesquisadores do Museu do Café desenvolveram um projeto de História Oral que visou mapear e estudar a estrutura do comércio do café na cidade de Santos, São Paulo, intitulado “Memórias do Comércio do Café de Santos”. O projeto buscou conhecer suas práticas cotidianas por meio da escuta de trabalhadores (em geral aposentados) ligados à cadeia produtiva do café na cidade.
As conversas foram iniciadas por trabalhadores do alto comércio exportador, devido à proximidade destes com a Bolsa de Café, dentre eles corretores, classificadores, donos de armazéns, etc. Nesse momento pudemos registrar memórias de mulheres em posições e profissões que historicamente foram identificadas como ofícios masculinos, por exemplo, a corretagem de café.
Ao avançar na busca por diferentes vozes dessa cadeia comercial, os trabalhadores braçais do porto e armazéns circunvizinhos foram encontrados, sendo agregadas ao projeto as vozes de estivadores, carregadores, ensacadores e fiéis de armazéns. Entretanto, o projeto também abrangeu uma série de depoentes que dedicaram parte de suas vidas a trabalhos que eram considerados “de mulher”; entre eles a catação de café.
Trabalho penoso, árduo, legado a mulheres pobres e, em geral, invisível mesmo dentro dos estudos voltados para história do café, a presente comunicação objetiva analisar as memórias de duas trabalhadoras de armazéns de catação de café — Maria Dias Carvalho e Ana Gessi Penedo — e a de Nilton Manso Branco, ex-dono de armazém de catação, cruzando seus discursos com outros tipos de documentação e textos de autoras como Margareth Rago e Maria Izilda Santos de Matos, referências no estudo de gênero. Ao final, objetivamos trazer à luz um ofício que se extinguiu e que até hoje é pouco estudado.
SOBRE O OFÍCIO: CATADEIRAS DE CAFÉ
Por que “catar” o café? Terminado o trabalho nas lavouras de plantação, colheita e beneficiamento, as sacas eram trazidas para o porto de Santos para serem negociadas, fosse para exportação ou para o mercado interno. A catação de café entrava na etapa que se localizava entre o processamento do café na fazenda até sua venda, pois eliminava os grãos defeituosos de um lote e aumentava o valor do café a ser exportado. Suas primeiras menções aparecem em publicações na primeira metade do século XIX. Neste livro de João Joaquim Ferreira de Aguiar, de 1836, já apareciam referências às “Casas de Escolha” na fazenda:
Limpo da poeira e do pergaminho, passa o café para a Casa da escolha, onde se separão todos os grãos podres, quebrados ou esbranquiçados; da perfeição com que isto se faz he que resulta a bondade do Café e o seu maior preço no Mercado; este trabalho da escolha pôde mui bem sêr feito por as escravas que têm cria, e cada huma d’ellas póde escolher por dia três a quatro arrobas. (AGUIAR, 1836: p.17)
Um pouco mais adiante, em 1844, Augustinho Rodrigues em “A arte da cultura e preparo do café” identifica o mesmo processo de “escolha” de grãos após a passagem do café descascado em pilões e passado pelo ventilador.
Sendo o café socado em pilões , é preciso passal-o no ventilador e depois escolhel-o. Se este serviço é feito á mão demanda um grande numero de pessoas, cujo serviço avaluado não é equivalente a outro qualquer trabalho; porém nós vamos dará descripção d’uma machina , que sendo tocada por um obreiro, pôde limpar e escolher em 12 horas 550 arr., e sendo movida por água dará no mesmo tempo 1000 arr. (CUNHA, 1844: p.93–94)
Todavia, com o avançar do século XIX, as menções ao trabalho de escolha de grãos começaram a aparecer ligados à classificação comercial do café que seria vendido para o exterior, agora com o nome de “catação de café”. Um dos motivos para esse deslocamento da atividade do campo para as cidades portuárias pode estar relacionado à criação da Bolsa de Nova York nos anos de 1880 e a adoção do padrão norte-americano de identificação de defeitos para estabelecimento do preço da saca pelo Brasil em 1907[2], época a qual as catações de café se tornaram procedimento corriqueiro nas grandes capitais como São Paulo e Rio de Janeiro, assim como no porto de Santos.
A catação de café era um trabalho feito majoritariamente por mulheres. Existem poucas referências de chamadas de trabalho para ambos os sexos em jornais do Rio de Janeiro da década de 1910, assim como uma única foto em livro francês intitulado “La valorisation du cafe” do mesmo período, sendo que na imagem, aparecem homens em uma mesa de catação com a legenda “magasin du café à Santos — triage”.
Não se sabe ao certo quando surgiu a nomenclatura “catadeiras de café”, no feminino, mas ela já parecia bastante consolidada durante as décadas de 1890[3] e 1900 veiculando algo que parecia ser um conhecimento já consolidado no imaginário popular.
As mulheres que buscavam os ganhos da catação de café faziam, em geral, parte dos grupos menos favorecidos economicamente e que se dividiam, além das funções domésticas, entre outras profissões como confecção de flores, de bordados, na costura de sacaria, no comércio, na lavagem de roupas, etc. Margareth Rago, ao analisar a visibilidade e representação de mulheres trabalhadoras na literatura feminina da primeira metade do século XX, apresenta o seguinte:
Já as mulheres pobres aparecem na condição de trabalhadoras extremamente exploradas, que denunciam o rebaixamento salarial em relação aos homens trabalhadores. “Catadeiras de Café”, por exemplo, não vêem perspectivas de melhorar a sorte, ao contrário daqueles: “Trabalho de mulher nunca vai adiante.”, afirma uma delas, “A gente ganha uma miséria em toda parte. Nunca soube de catadeira de café que tivesse alguns cobrinhos” (RAGO,2005)
Era um trabalho muito custoso, pois a catação era feita manualmente, eliminando um a um os grãos defeituosos e outras impurezas — o que lhes deu o apelido de “pianistas”. A remuneração era por saca catada, por vezes trabalhando mais de 10 horas, de acordo com a demanda — sem contar os serviços domésticos. Ana Gessi Penedo[4], que começou a trabalhar na catação de café ainda jovem, aos 22 anos, traz em seu discurso como era o cotidiano da profissão:
[…] eu fui uma das catadeira ali do armazém 13, 14…15 e 16 também, catamos ali, e o que eu tenho a dizer é isso aí, gostava mas ganhava uma mixaria.
[…]
Tinha bastante senhoras, bastante moças, tudo trabalhando. […] a gente chegava , trazia um guarda pó de casa, um pano pra mim não ficar toda empoeirada, aí trazia aquilo, tava lá na frente, aí ficava ali sentada , só “tocando piano”. Porque levantava quem queria, se você quisesse levantava, o interessante era você fazer a sua cota, você precisava do dinheiro, então você fazia a sua cota. (PENEDO, 2012:p.1)
Os armazéns de café na cidade de Santos se espalhavam por toda zona portuária. Quando Ana fala sobre os armazéns “13, 14, 15, 16”, refere-se aqueles pertencentes à Companhia Docas de Santos, empresa que recebeu a concessão do porto de Santos até a década de 1980. Esses armazéns provavelmente eram usados por empresas particulares por meio de aluguel. Outro local bastante utilizado para catações de café eram os andares térreos dos casarões no bairro do Valongo, que contavam com pé direito alto e podiam ser utilizados para este fim.
Em paralelo com a indústria têxtil e o trabalho de costura de sacas, era bastante comum o emprego de mulheres jovens, principalmente entre 16 aos 22 anos, pois eram assíduas, estáveis e em geral não tinham obrigações familiares além de terem boas condições físicas com boa visão e destreza manual (MATOS, 1996:73). Entretanto, outra característica da profissão de catadeira de café era a possibilidade das mulheres poderem levar seus filhos pequenos. Maria Dias Carvalho[5] começou muito cedo na profissão, sendo suas primeiras memórias de infância já relacionadas ao café, quando acompanhava sua mãe na jornada de trabalho nos armazéns na região do Valongo, em Santos, onde trabalhou até os 14 anos.
Eu começo a me lembrar, sempre foi em catação de café, desde pequeninha brincando, correndo e também quando eu cresci mais um pouquinho comecei a ajudar a minha mãe catando café e também brincando, correndo, subindo nos sacos, porque afinal de contas eu era criança ainda… (CARVALHO, 2012:p.1).
Nilton Manso Branco[6], que possuiu armazém de catação de café durante os anos de 1960 a 1972, trouxe em suas memórias discurso semelhante ao que Maria nos apresentou, pois vivenciou a catação em dois momentos de sua vida: primeiro quando criança acompanhando a própria mãe, que era catadeira, no dia-a-dia de trabalho e também acompanhando suas funcionárias.
Assim, por exemplo, às vezes uma catadeira chegava, […] acompanhada de filho, seria aquela coincidência, quando minha mãe catava café eu acompanhava minha mãe, então quando eu tinha a catação boa parte das minhas catadeiras chegavam com os filhos. Teve caso delas estarem grávidas na catação, terem esses filhos — um filho nesse caso — e voltarem com o filho pequeninho, amamentando. Quer dizer, vão vivendo aí cm a gente. Nesses doze anos que eu tive a catação aconteceu muito disso.
As memórias de Maria e Nilton fazem com que fique evidente o perigo ao qual essas mulheres estavam expostas cotidianamente. Tal questão não foi levantada por nenhum dos depoentes, mas não quer dizer que não existissem. Uma nota no jornal paulistano “A Gazeta” de 21 de abril de 1928 trazia a divulgação do acidente de trabalho ocorrido na Companhia Santista de Armazéns Gerais, localizado na cidade de Santos.
DUAS POBRES CRIATURAS SALVAM-SE POR ACASO, DE UMA HORROROSA MORTE
Santos, 21 — Seriam 16 horas de hontem quando nos depositos de café da Companhia Santista de Armazéns Geraes se verificou um desastre, felizmente sem graves consequencias.
Á referida hora desabou uma grande pilha de saccos de café sob a qual ficaram as “catadeiras” Maria da Conceição, de 29 annos, casada, moradora á rua Padre Anchieta, 282 e Leopoldina Augusta de 11 annos, filha de José Augusto da Silva, moradora á rua Almirante Tamandaré, 28.
Immediatamente alliviadas do peso sob que se achavam e chamada a Assistencia, foram as victimas do desastre transportadas á Santa Casa, onde foi verificado terem recebido contusões generalizadas sem gravidade.
Depois de receberem os socorros que eram indicados no caso, recolheram-se a suas residencias.
Na delegacia Regional foi instaurado o respectivo inquerito de accidente no trabalho. (A GAZETA, 1928:p.4).
Os balcões onde as mulheres catavam café ficavam localizados, em geral, no centro de um armazém rodeado de pilhas de sacas de café de 60 kg., feitas por carregadores e ensacadores. Pela grande quantidade de mulheres que trabalhavam nessa profissão, a rotatividade dessas pilhas de sacas era bastante grande e, apesar da destreza que os trabalhadores braçais tinham em formação dessas pilhas, ocasionalmente aconteciam desmoronamentos que poderiam atingir crianças e mulheres que ali trabalhavam.
Maria também justifica a escolha de sua mãe pelo trabalho de catação por não possuir estudos e ser um dos únicos empregos que poderia ter. Além disso, segundo a depoente, era o único lugar que as mulheres poderiam trabalhar e levar seus filhos, “principalmente minha mãe que era sozinha, o marido tinha ido embora […]” (CARVALHO, 2012: p.1). Esse fato também explicaria a sua saída da profissão na adolescência, pois teria entrado no ensino profissionalizante e, portanto, ela e seus irmãos tiveram a possibilidade de seguir caminhos diferentes da mãe.
Todavia, apesar de ser considerado um trabalho menor e não-qualificado, no trabalho de catação de café, assim como no de costura de sacas, as trabalhadoras possuíam uma formação bastante adequada a esses tipos de trabalhos. Ao explicar a relação de emprego de mulheres na indústria de sacaria de juta na cidade de São Paulo, Maria Izilda Santos de Matos nos ensina uma característica fundamental e perfeitamente aplicável à realidade das mulheres que buscavam o trabalho nos armazéns de catação de café: o fato das características gestuais do trabalho de catação lembrar — de certo modo — o trabalho doméstico, fazendo com que tivessem vantagem em relação aos homens, ou seja, os movimentos dos braços e mãos atendiam a uma exigência de coordenação para aceleração do trabalho em tempos de grandes quantidades de sacas para limpar.
As operárias têxteis da juta não podem ser vistas, porém, como operárias não-qualificadas ou trabalhadoras manuais mal formadas; ao contrário, possuíam uma formação adaptada às atividades […] que exerciam, haviam adquirido habilidades, através de um aprendizado das funções de futuras mães quando eram meninas, e depois mediante uma formação contínua para os trabalhos domésticos. Portanto, os baixos salários, a facilidade no controle, as tarefas que não requeriam conhecimento de um ofício e nem grande esforço muscular, somados às aptidões social e culturalmente desenvolvidas, eram os determinantes do emprego maciço de mulheres nas indústrias de juta, principalmente jovens e meninas. A incorporação do trabalho feminino também parece corresponder, por parte dos empregadores, a uma busca de trabalhadores com os atributos vinculados à mulher a partir do seu lugar subordinado na instituição familiar: a submissão e a paciência, o cuidado e a docilidade (MATOS, 1996:73).
O mesmo poderia ser aplicado à catação de café que, ao ser considerada uma “função feminina” por ser um trabalho manual, e apesar de ser considerada de menor esforço físico com baixa compreensão mecânica e de caráter repetitivo, exigindo habilidades consideradas naturais e inatas às mulheres, como paciência, ritmo e destreza manual (MATOS, 1996 e PERROT, 1987), era uma função bastante qualificada e que tinha precedente na própria formação dessas trabalhadoras.
A incorporação do trabalho feminino também poderia ser justificada quando analisada a estrutura desses armazéns de catação. Em nenhum momento pôde-se constatar a existência de mulheres em posição de supervisão do trabalho: este, assim como o trabalho braçal, sempre estava a serviço de um homem, seja o dono do armazém ou um caixeiro. Tal questão vem de encontro com “[…] uma busca de trabalhadores com os atributos vinculados à mulher a partir do seu lugar subordinado na instituição familiar: a submissão e a paciência, o cuidado e a docilidade” (MATOS, 1996:73).
A catação era um trabalho que exigia atenção e tomava muito tempo e dedicação dessas trabalhadoras. Em geral, começava às 8 horas da manhã e terminava às 6 horas da tarde, com intervalo para o almoço, podendo se estender por mais horas conforme a demanda. Segundo Maria, o tempo que uma saca poderia ser “limpa” variava de acordo com a qualidade do café:
[…] chegava os sacos de café, os cafés bons ou maus e a mulherada nas mesas compridas de madeira com divisória, tinha os banquinhos e na mesa tinha uns preguinhos que se pegava os sacos e se levantava aquele saco de 60kg em duas e colocava no banquinho e se virava na mesa e aí o saco de pé, colocava-se um pauzinho pra levantar e escorrer, tinha o seu avental e catava manualmente mesmo, mão a mão como se tivesse catando feijão hoje em dia e catava o café e quando acabava o de cima tava cheio de baixo, então se tirava e colocava outro, e quando o café era bom, era rápido, um saco de café que as vezes era da Mogiana como eu falo que era o café bom, as vezes em 15 minutos, 20 se catava o saco de café e se catava outro porque as mulheres ganhavam por saco, então quanto mais saco de café elas catassem mais elas ganhavam. Então era isso, eu do lado da minha mãe, ela queria catar muito café e eu tinha que ajudar, e quando era ruim, as muitas vezes, era muito ruim, muito ruim, cheio de sujeira, de café podre, de galhos, de pedras, e muitas vezes a gente peneirava pra tirar o excesso de café pra depois a gente catar. Aqueles […] cafés demoravam muito tempo, até 1 dia ou até mais de 1 dia pra se catar o café, porque ele tinha que ficar limpo, depois não adiantava se catar tudo e colocar assim atrás, porque vinha depois o examinador, não lembro o nome que se dava, mas ele furava os sacos e pegava um pouco e dali examinava, e se achava uma sujeirinha, colocava-se de novo, aquele estava reprovado, e ia pra catação de novo. Então a mulher não tinha como enganar, catar e por tudo no saco de baixo está bom, porque se achasse alguma sujeirinha era tempo perdido e dinheiro também. (CARVALHO, 2012:p.1).
Nilton Manso Branco trouxe uma visão que complementou a de Maria no que se refere os desafios apresentados no cotidiano do trabalho. Segundo Nilson, dependendo do café, havia dias mais produtivos e dias menos produtivos. Isso fazia com que essas mulheres criassem táticas para otimizar seus ganhos com a produção:
[…] acontecia era assim: se o serviço estivesse rendendo pra elas, elas ficavam o dia inteiro, se o café que chegava na mesa e elas percebiam que iam trabalhar com aquela qualidade do café, a maioria saia e falava que ia pra tal lugar e nem voltavam. Na época eu ficava chateado porque a gente tinha responsabilidade com as firmas, mas hoje eu até entendo que elas tinham até razão porque elas estavam lá para ganhar dinheiro e no caso, as vezes de acordo com a qualidade, não dava. Então era muito comum elas terem mau estar, sei lá, parecia uma série de coisas que faziam com que elas saíssem, e como nós não tínhamos assim um compromisso direto, elas eram todas avulsas, então acabava aceitando a condição, mas hoje em dia eu até entendo porque elas deviam ter razão em fazer isso, mas também foi uma época boa pra elas também ganharem um dinheirinho. (BRANCO, 2012: p.2)
Levando em conta o trabalho de expediente aliado aos ganhos por produção, tal tática as aliviaria de um penoso trabalho com pouca ou nenhuma remuneração, visto que, dependendo do estado da saca teria que “catá-las” repetidas vezes. Esse fato também afasta a pouca qualificação que tinham para o trabalho, visto além de ter que reconhecer os defeitos inerentes à qualidade do café poderiam apenas, de olhar uma pequena amostra, ter noção da qualidade geral do lote, conhecimento em geral creditado apenas à pessoa responsável pela conferência do café catado.
Os armazéns de catação manual podiam ser encontrados no porto de Santos até a década de 1970, quando maquinários começaram a substituir em grande parte a mão de obra dessas mulheres. Hoje o que restou deste ofício feminino foram as memórias que ainda podem ser registradas a partir da escuta de depoentes, algumas até relativamente jovens, visto que trabalharam durante a infância.
CONFERINDO VISIBILIDADE: MUSEU DO CAFÉ E AS CATADEIRAS
O edifício da antiga Bolsa Oficial de Café é um espaço de memória ligado ao comércio exportador e que, talvez por toda sua existência como instituição financeira, tenha sido um ambiente masculino por excelência. Por sua vez, o Museu do Café tem como dever zelar não só pela memória desses homens, a qual já é inerente à sua sede, mas também daquelas pessoas que tiveram suas trajetórias ignoradas e invisibilizadas.
Entretanto, durante anos as catadeiras não foram representadas em suas atividades e exposições. Foi só a partir do contato com uma das depoentes do projeto, Maria Dias Carvalho, que após visitar a exposição de longa duração em 2012, nos deixou uma reclamação dizendo que não tinha visto representada profissão que um dia desempenhou com sua mãe na infância, que nos atentamos a esse silêncio. Esse fato foi uma ponte que ligou os pesquisadores ao primeiro depoimento que registraria a voz de uma catadeira de café no projeto.
Em dezembro de 2014, foi inaugurada uma nova exposição de longa duração que conta com o Módulo intitulado “Praça de Santos”. Nessa sala, estivadores, corretores, catadeiras, classificadores, ensacadores e catadeiras dividem espaço, em frente aos seus objetos de trabalho e ao lado de um trecho do depoimento que melhor represente seus ofícios. Este módulo visou aproximar os discursos dos trabalhadores do café registrados no projeto “Memórias do Comércio do Café” aos visitantes e é um respiro para os anos que o museu se manteve distante de personagens tão importantes para seu objeto de preservação. É talvez também um primeiro passo para aproximação e identificação de alguns setores da sociedade com o palácio que mais os afastou que os aproximou.
Todavia, mesmo na seleção de um objeto que representasse seu trabalho as catadeiras ficam desfavorecidas. Enquanto corretores aprecem juntos de suas latinhas de amostra e aparelhos de comunicação, classificadores de suas mesas de prova e ensacadores com suas balanças romanas, gamelas e furadores de saca, os objetos de trabalho das catadeiras — latas de cera para armazenar os defeitos e balcões de madeira — são raros de se encontrar por serem considerados descartáveis. Restam sacas de café que são utilizadas como cenografia e guardam um pouco da memória desse ofício. No entanto, seus discursos agora se encontram registrados e disponibilizados, fazendo jus às trajetórias de tantas trabalhadoras invisibilizadas no comércio do café.
FONTES ORAIS
BRANCO, Nilton Manso, corretor de café da cidade de Santos — SP. Entrevistadores: Bruno Bortoloto do Carmo e Pietro Marchesini Amorim. Santos, Museu do Café, 2012, 7p.
CARVALHO, Maria Dias, trabalhou como catadeira de café na infância na cidade de Santos — SP. Entrevistadores: Bruno Bortoloto do Carmo e Pietro Marchesini Amorim. Santos, Museu do Café, 2012, 6p.
PENEDO, Ana Gessi, trabalhou com catação de café durante a infância na cidade de Santos — SP. Entrevistador: Bruno Bortoloto do Carmo. Santos, Museu do Café, 2012, 5p.
FONTES TEXTUAIS
A GAZETA — S. Paulo — Sabbado, 21 de abril de 1928. Acervo Biblioteca Nacional.
CORREIO PAULISTANO — quarta-feira, 25 de janeiro de 1905. Acervo Biblioteca Nacional.
CORREIO PAULISTANO — Sabbado, 2 de março de 1907. Acervo Biblioteca Nacional.
GAZETA DE NOTICIAS, sexta feira 9 de maio de 1890. Acervo Biblioteca Nacional.
BIBLIOGRAFIA
AGUIAR, João Joaquim Ferreira de Aguiar. Pequena memoria sobre a plantação, cultura e colheita do café. 1836, p.17. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/3872. Acesso em: 6 nov. 2018.
CUNHA, Augustinho Rodrigues. A arte da cultura e preparo do café. 1844, p. 93–94. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/3873. Acesso em: 6 nov. 2018.
MATOS, Maria Izilda Santos de. Trama e Poder: trajetória e polêmica em torno das indústrias de juta (São Paulo 1888–1934). Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996, 71.
PERROT, Michele. Qu’est-ce qu’un métier de femme? IN: Le Mouvemente Social. Paris: Les editions Ouvriéres, 1987, p.3–7.
RAGO, Margareth. Cultura feminina e tradição literária no Brasil (1900–1932). IN: Mulheres em ação. Práticas discursivas, práticas políticas, de Tânia N. Swain e Diva Gotijo,(orgs.) Florianópolis: Editora Mulheres, 2005. Disponível em: http://historiacultural.mpbnet.com.br/artigos.genero/margareth/RAGO_Margareth-cultura_feminina_e_tradicao_literaria.pdf. Acesso em: 3 ago. 2017.
UCKERS, Willian H. All About Coffee. United States of America: Burr Printing House, 1935.
* Bruno Bortoloto do Carmo é doutorando em História pela PUC-SP e pesquisador do Museu do Café.
[1]“As the capital of the nation Rio is a metropolitan city statecraft, diplomacy, wealth, and fashion first, while Santos, on the other hand, is a coffee city first, last, and all the time. In Rio it is possible to move about for days and never be reminded of coffee; in Santos at no hour of the day or night is it possible to escape from the coffee atmosphere. In the daytime some form of coffee activity is always in the picture; at the night coffee is so much a part of the social life of the city that no social function is free from some suggestion of coffee’s supremacy”. O autor publicou a primeira edicação do livro em 1922, sendo essa a segunda edição. UCKERS, Willian H. All About Coffee. United States of America: Burr Printing House, 1935, 323–333.
[2]“A Associação Commercial de Santos communicou ao sr. presidente do Estado haver adoptado os typos de Nova York para a classificação do café”. CORREIO PAULISTANO — Sabbado, 2 de março de 1907. Acervo Biblioteca Nacional.
[3]O ano de 1890 é data mais antiga que aparece menção ao termo; A Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro trazia em sua seção de classificados: “CATADEIRAS DE CAFÉ: precisa-se de boas catadeiras de café; na rua de S. Bento n. 31, sobrado” Cf. GAZETA DE NOTICIAS, sexta feira 9 de maio de 1890. Acervo Biblioteca Nacional.
[4]Ana Gessi Penedo nascida em 1933, natural de Florianópolis — SC trabalhou com catação de café durante a adolescência na cidade de Santos — SP.
[5]Maria Dias Carvalho nascida em 1949 trabalhou com a minha mãe em um armazém de catação de café no bairro do Valongo.
[6]Nilton Manso Branco nascido em 1934 foi dono de uma catação de café e corretor de café.
* Bruno Bortoloto do Carmo é doutorando em História pela PUC-SP e pesquisador do Museu do Café.